Resenha do livro: Deuses Americanos

AVISO AOS VIAJANTES:

“Deuses Americanos”, do Neil Gaiman, é praticamente um clássico moderno, e nesse ano ele completa dez anos de existência, além de ser ganhador dos prêmios Hugo e Nebula. Neil criou um mundo interessante nessa obra, mas devo adiantar a vocês que a história é bem triste… Ou seja, tem que estar preparado para lê-la, e não é de uma sentada só, já que o livro leva os leitores a refletir sobre diversos aspectos da vida, não só individual, como das pessoas como um todo.

O próprio autor faz uma advertência aos navegantes no início de seu livro, e vocês entenderão, após a leitura, o motivo pelo qual ele diz que “só os deuses são reais” nessa frase: “Nem é preciso dizer que todas as personagens, vivas, mortas ou mortas-vivas utilizadas nessa história são fictícias ou foram usadas em um contexto fictício. Só os deuses são reais.”

Deuses Americanos também pode ser entendido, sob determinado ponto de vista, como uma grande metáfora do autor inglês que mora e trabalha nos EUA. Assim como, em um sentido mais amplo, pode ser compreendido como uma história sobre como nós, humanos, vamos nos afastando não somente das crenças antigas, como vamos nos desapegando e, de certa forma também, vamos anulando parte de nossa história a cada era, que tende a, hoje em dia, ficar cada vez mais curta.

Para facilitar o entendimento da obra, faz-se necessário saber o mínimo sobre as mitologias abordadas, ou estar disposto a dar uma pesquisada básica. Citamos como exemplo bem completinho e que vale muito a pena ter na estante, o livro Ragnarök – O Crepúsculo dos Deuses – Uma introdução à mitologia nórdica, que aliás “introdução” é uma maneira humilde de chamar esse livro de tão completo que ele é. Entre as mitologias abordadas no Deuses Americanos podemos citar a mitologia celta, a eslava, a africana e a nórdica, mas, mais especialmente ainda a nórdica, já que o Deus-personagem-principal é Wednesday, ou seja, Odin, já que quarta-feira é o dia desse deus.

“Shadow caminhou aos tropeços pelo terminal do aeroporto, claramente iluminado. Estava preocupado com o negócio do bilhete eletrônico. Sabia que tinha uma passagem para viajar na sexta, mas não sabia se serviria hoje. Para Shadow, qualquer coisa eletrônica parecia fundamentalmente mágica e suscetível de evaporação a qualquer instante.”

É muito curioso isso que já notei em várias histórias do Neil Gaiman. Ele quase sempre coloca, de formas diferentes, seu pavor a aviões e tudo que os envolve, em várias de suas histórias.

Cada capítulo é aberto com alguma citação, seja de provérbio, como a citação abaixo, ou algum trecho de alguma obra relevante a cada capítulo em si.

“Three may keep a secret, if two of them are dead.” ― Ben Franklin, Poor Richard’s Almanack {Três podem guardar um segredo, se dois deles estiverem mortos.}

No meio da trama principal que leva Shadow em uma quest com Wednesday-Odin, Neil nos brinda com histórias paralelas intercaladas, como se fossem interlúdios, tanto atuais, quanto de antigas eras, em que os deuses estão de alguma forma envolvidos e que têm relevância para a trama como um todo, assim como podem ser lidas como histórias extras, a maioria com sua própria relevância em si.

Logo no comecinho da história, em um simples diálogo, Neil faz uma bela crítica à mania de estereotipação das pessoas:

“― Eu sou um leprechaun ― disse com um sorriso malicioso.
Shadow não sorriu.
― É mesmo? ― perguntou. ― Você não deveria beber Guinness?
― Estereótipos! Você tem que aprender a pensar além dos padrões ― disse o homem barbado. ― Tem muito mais coisas na Irlanda do que Guinness.
― Você não tem sotaque irlandês.
― Estou aqui há tempo demais.
― Então você veio mesmo da Irlanda?
― Já disse. Eu sou um leprechaun. A gente não vem da porra de Moscou!”

“Deuses Americanos” é um livro atual, porque coloca todos os pavores e as pré-concepções que temos dos deuses, como “seres” que exigem sacrifícios, etc., de uma forma diferente, pois eles são personagens de certa forma decadentes, vivendo em nosso mundo moderno, e “competindo” com deuses do capitalismo, como, a televisão, os cartões de crédito, etc., o que, para muitos, a princípio, é uma simples crítica ao consumismo e ao capitalismo, para mim pode ser compreendido como algo muito mais profundo, uma crítica, como já mencionei acima também, à própria mania do ser humano de se esquecer de seu passado, de descartar não somente crenças como objetos com uma facilidade incrível. E descartamos costumes, crenças, e outras coisas, até pessoas, com a mesma facilidade com que jogamos lixo fora.

Abaixo seguem alguns exemplos da escrita peculiar de Gaiman {prosa poética, metáforas estilosas, etc.}

“De repente, começou a se perguntar se o mulso (hidromel) seria o responsável por ele soltar a língua. Mas as palavras saíam como água espirrando de um hidrante quebrado no verão, e ele não poderia contê-las mesmo se tivesse tentado.”

“Você não sente o prazer correndo nas veias, igual à seiva das plantas na primavera?”

“Sobre sua cabeça, o céu era cinza-aço, sem formas, e plano como um espelho. Continuava nevando, de forma irregular, em flocos fantasmagóricos que pareciam tropeçar no ar.”

“Uma réstia de sol passava através da janela, fazendo com que as partículas de poeira dançassem na luz.”

“Neve (…) Uma massa e um grupo de flocos de neve enormes e estonteantes caindo pelo ar, remendos de branco contra o céu cinza-chumbo, neve que toca a língua com frio, que beija o rosto com um toque hesitante antes de congelar a gente até a morte. Trinta centímetros de neve de algodão-doce, criando um mundo de conto de fadas, deixando tudo irreconhecível de tão lindo…” 

“Uma gatinha parda colocou a cabeça para fora e pulou no meio das latas de lixo atrás de um prédio… a luz transformava até o lixo em magia.”

Outro ponto alto e extremamente instigante do livro é seu clima estradeiro ― que praticamente leva o leitor em uma viagem pelos Estados Unidos levemente modificado, como o próprio Neil adverte no início do livro, em sua quest… e qual é essa quest, afinal? Ficamos sabendo qual era o grande propósito de Wednesday ao recrutar Shadow? Sim… e várias dicas são dadas desde o início, quando o primeiro diz ao último algo sobre uma tempestade que se aproxima… e o desfecho do livro resolve diversos elementos que podemos não entender a princípio, e todas as linhas são ligadas, como em uma bela história de suspense que reúne, no final, todas as dicas que foram dadas desde o princípio, e a conexão de elementos aparentemente dispersos nos leva à conclusão que, já adianto, é belíssima… mas é triste. Bem triste. É um livro que nos faz refletir, e cuja leitura eu sugiro que seja propositalmente lenta, para digestão completa da quantidade imensa de informações e personagens apresentada por Neil Gaiman. Personagens estes que, embora sejam muitos, são apresentados em momentos especiais e cruciais na trama, e não ficam perdidos e jogados, nem um pouco.

“A linguagem é um vírus (…), a religião é um sistema operacional e (…) as orações são a mesma coisa que a porra do spam.” 

“Esses são os deuses que foram esquecidos e agora eles podem até estar mortos. Só podem ser encontrados em histórias áridas. Eles se foram, todos eles, mas seus nomes e suas imagens continuam entre nós.” 

“Esses são os deuses que já perderam a consciência da memoria. Até mesmo seus nomes se perderam. Desde há muito tempo, seus totens foram quebrados e derrubados. Seus últimos sacerdotes morreram sem passar o segredo adiante. Deuses morrem. E quando morrem de verdade, ninguém chora por eles nem se lembra deles. As idéias são mais difíceis de matar do que as pessoas, mas também podem ser assassinadas no fim.”

Menção leve aos mitos de Cthulhu (veja a resenha de Nas Montanhas da Loucura, livro do H. P. Lovecraft que faz parte do universo dos mitos de Cthulhu):

“Um pânico completo tomou conta dele, ali no corredor dos deuses que haviam sido esquecidos ― deuses com rosto de polvo e outros que eram apenas mãos mumificadas, ou pedras caídas, ou fogos na floresta.”

“A língua de Laura tremia dentro da boca de Shadow. Estava fria e seca, e tinha gosto de cigarro e de bile. Se Shadow ainda tinha alguma dúvida a respeito de sua mulher estar morta ou viva, o mistério acabou ali.”

“O Pai de Todos (All Father) fez o mundo (…) construiu tudo com as próprias mãos a partir dos ossos despedaçados e da carne de Ymir, seu avô. Ele colocou o cérebro de Ymir no céu como nuvens, e o seu sangue salgado se transformou nos mares que cruzamos. Se ele fez o mundo, vocês não percebem que fez esta terra também? E se morrermos aqui como homens, acham que não seremos recebidos em seu átrio?”

“Quando falou sobre a lança que perfurou a lateral do corpo de Odin, o bardo urrou de dor da mesma maneira que o Pai de Todos tinha gritado em sua agonia, e todos os homens tremeram, imaginando sua dor.”

Curiosos com o fato de a morte de Jesus ser tão similar à de Odin? Sim, segundo esse livro resenhado aqui, o Cristianismo apropriou-se de diversos elementos das mitologias pagãs.

Alguém reconhece esse gato?

“Foram acomodados em um enorme sofá velho de pelo de cavalo, incomodando um gato cinzento senil, que se espreguiçou, levantou e andou, rígido, até uma parte mais distante do sofá, onde se deitou. Cuidadosamente, olhou para cada uma das pessoas, então fechou um olho e voltou a dormir.”

Neil Gaiman não ensina mitologia ao leitor – pelo contrário, ele supõe que o leitor tenha um conhecimento das mitologias. Então, não espere aulas de mitologia neste livro e, como já mencionei antes, seria legal ler algo sobre alguns dos deuses mencionados para não ficar totalmente por fora das referências durante a leitura, pois alguns são fáceis de serem identificados, como Anúbis, o Chacal dono de uma funerária, ao passo que outros deuses não são tão facilmente identificados assim por quem não tem um pouquinho de conhecimento mais aprofundado de diversas mitologias. Assim como em Wednesday, Neil nos dá a dica maior de que o homem que “contrata” Shadow para trabalhar é Odin, Low Key tem o som, em inglês, do nome do Deus Nórdico da Trapaça, Loki. E várias dicas assim vão surgindo no texto, tanto quanto aos nomes e quanto às personalidades e atitudes de cada um.

O resultado do Ragnarök nos quadrinhos de Thor

A obra pode ser considerada um expoente do Mitopunk: tem todas as características dos gêneros algumacoisa–punk, ou seja, é urbana, decadente, tem aquele feeling meio noir até, em alguns momentos, e tem o elemento da mitologia como principal (em breve teremos uma resenha interessante com o tema Steampunk), mesmo que seu significado seja metafórico, já que, neste livro, os Deuses não apenas existem, como são personagens principais de uma trama complexa e ricamente detalhada e contada.

Em vez de ser a jornada do herói, pode-se chegar a afirmar que a jornada de Shadow é a jornada do anti-herói, como já mencionamos em diversas resenhas aqui no site, já que ele foi preso, foi solto, foi recrutado para “trabalhar” para Odin, o que implicava envolver-se em trapaças, brigas e outras tramóias do Pai de Todos. E, até chegar ao final de sua jornada, tanto metafórica quanto literal, pelos Estados Unidos, os deuses antigos e os deuses novos lutam por lugares que ambos acabarão perdendo, pois a Humanidade está cada vez mais rapidamente se afastando não só de suas crenças como de suas criações também.

Odin e seu cavalo de oito patas… um admirável mundo novo à sua frente.

Um dos momentos dos interlúdios mais tristes é o que relata a morte lenta do Paganismo Celta, assim como o trecho em que Neil Gaiman narra a história de uma escrava específica, para exemplificar a morte da fé nos deuses, é uma das narrativas mais tristes e realistas no livro, trazendo à mente cenas bem mais reais e imaginativas do que as mencionadas em livros escolares de história.

Trecho da Estátua da Liberdade, um símbolo tido como tipicamente americano:

“A senhora Liberdade é estrangeira, como tantos outros deuses que os americanos prezam. Nesse caso, uma francesa, apesar de que, em deferência às sensibilidades americanas, os franceses tenham coberto aquele peito magnífico da estátua que deram de presente a Nova York. A Liberdade (…) é igual a uma casca de banana, só que com gosto ruim e com ironia incluída.”

LOL pela imagem 😛

Curiosidade: No livro “Coisas Frágeis 1” (resenha em breve) há uma noveleta que se chama “O Monarca do Vale” que revela a verdadeira identidade do Shadow.

Em meio a relatos tristes, há alguns poucos, porém eficientes momentos de ironia e piada, como estes, por exemplo:

“― Você é grandão ― disse Nancy, olhando nos olhos cinza-claro de Shadow com seus olhos velhos cor de mogno. ― Um pedaço de mau caminho, mas eu preciso falar, você não parece muito inteligente. Você lembra meu filho, que é tão imbecil como se tivesse comprado sua burrice numa liquidação de dois por um.” 

“― Quando se é diretor de funerária, não se faz perguntas a respeito da saúde de ninguém. As pessoas ficam achando que você está conferindo se vai ter trabalho ― disse, em tom grave.” 

E é claro, Nancy é Anansi, que nos Estados Unidos ficou conhecido como Uncle Nancy (tio Nancy) e quando Nancy/Anansi se refere a seu filho, esta é uma referência à história que Gaiman contaria depois, no spin-off de “Deuses Americanos”, “Os Filhos de Anansi”. E o diretor da funerária… bom, você sabem, não? [A @mecutuca jurou pra mim que “Os Filhos de Anansi”, ao contrário de “Deuses Americanos”, é um livro bem feliz… Assim espero porque, apesar de eu amar as histórias do Neil Gaiman, sua escrita, os temas que ele aborda, eu adorei “Deuses Americanos”, mas o achei um livro muito triste… até mesmo em comparação com Sandman, em seus momentos mais tristes]. “Deuses Americanos” é de uma desolação e beleza incrível, exatamente esse paradoxo que adoro nas histórias de Neil Gaiman. Sim, a tristeza pode ser bela, e, em “Deuses Americanos”, ela tem momentos de feiúra, quando não apenas deuses como seres humanos cometem atitudes hediondas, mas tudo se encerra com uma mensagem de que o ser humano pode evoluir e ser melhor e superior em relação aos deuses que eles mesmos criam.

“Quando as pessoas vieram aos Estados Unidos, elas nos trouxeram junto. Trouxeram eu, Loki e Thor, Anansi e o Deus-Leão, Leprechauns e Kobolds e Banshees, Kubera e Frau Holle e Astharoth, e trouxeram vocês. Viemos até aqui na cabeça dessa gente e criamos raízes. Viajamos com os colonizadores para o Novo Continente do outro lado do oceano. A terra é vasta. Mas o tempo passou e nosso povo nos abandonou, lembrando de nós apenas como criaturas do Velho Continente, como coisas que não tinham vindo com elas para o Novo. Quem acreditava verdadeiramente em nós morreu, ou parou de acreditar, e fomos abandonados, ficamos perdidos, assustados e sem posses, vivendo das migalhas de adoração e de crença que podíamos encontrar. E fomos sobrevivendo da melhor maneira possível. Então foi isso que fizemos, sobrevivemos à margem das coisas, onde ninguém prestava muita atenção em nós. Hoje temos, vamos admitir, pouca influência. Fazemos das pessoas nossas presas, tiramos delas e sobrevivemos; nós nos despimos e nos prostituímos e bebemos demais. Pegamos gasolina, roubamos, trapaceamos e existimos nas fendas das margens da sociedade. Somos deuses antigos, aqui neste Novo Continente sem deuses.”

O deus “Fama”. Arte de um fã.

“(…) existem outros deuses crescendo nos Estados Unidos, apoiando-se em laços cada vez maiores de crenças: deuses de cartões de crédito e de autoestradas, de internets e de telefones, de rádios, de hospitais e de televisões, deuses de plástico, de bipe e de néon. Deuses orgulhosos, gordos e tolos, inchados por sua própria novidade e por sua própria importância.”

Arte de Odin feita por fã

É interessante notar que Gaiman escreveu esse livro em 2001, mencionando justamente os deuses modernos surgidos da tecnologia e seu avanço, algo que a autora Julie Kagawa chegou a abordar em sua trilogia The Iron Fey, começando com The Iron King, porém, embora eu tenha adorado The Iron King, é inegável admitir que a grandiosidade da obra de Neil Gaiman praticamente ofusca não somente a obra de Kagawa como diversas outras obras de fantasia dessa década. Podemos afirmar que Gaiman conseguiu realizar a façanha de colocar o espírito da década em palavras lá nos idos de 2001, quando muitos autores estão repensando esse assunto apenas agora. E é nesse momento que afirmo que “Deuses Americanos” é leitura obrigatória, não somente a fãs de fantasia e mitologia, mas a todos os leitores que estiverem dispostos a encarar uma história estradeira em que deuses decadentes vivem em meio à Humanidade, que a cada dia que passa sabe menos não só sobre os deuses antigos, como sobre sua história, como brilhantemente Neil consegue colocar em um outro parágrafo em que um dos deuses, no caso, uma deusa, reflete sobre as mudanças de paradigmas na história e na importância dos “deuses” para os mortais:

“― Costumavam adorar as estradas de ferro aqui, mas num piscar de olhos os deuses de ferro estão tão esquecidos quanto os caçadores de esmeraldas…”

E por que Shadow? Além de o significado de ser uma Sombra ficar nas entrelinhas do livro… Shadow explica porque é chamado assim, o que data de sua infância… além de sabermos também porque tal “nome” foi escolhido por Gaiman, perto do final da história. E nunca ficamos sabendo o nome verdadeiro de Shadow, como se Sombra fosse realmente seu nome, o que resume sua importância no mundo.

Já esse Deus aqui, o Czernobog… não posso falar nada sobre ele. Entra demais no reino das criaturas, como o Spoiler Mor.

Um dos momentos mais belos do livro está no Julgamento de Anúbis… Sim, temos coração sendo pesado e comparado com uma pena ― exatamente como aprendemos nos livros de mitologia. Anúbis é um dos meus deuses prediletos e devo dizer que amei a retratação dele feita por Neil Gaiman em “Deuses Americanos”.

“A morte tinha desaparecido das ruas dos Estados Unidos, pensou Shadow, agora acontecia em quartos de hospital e em ambulâncias. Não se deve assustar os vivos.”

Neil Gaiman não deixa nem de explorar a história da típica cidadezinha norte-americana que parece meio parada no tempo e que tem um segredo sinistro, e esse é o caso de Lakeside… e nós ficamos sabendo qual é o segredo da cidade e porque coisas sinistras acontecem por lá até o fim da jornada de Shadow. E Neil ainda comenta, na voz de Shadow:

“É quase difícil acreditar que isso aqui (São Francisco) fica no mesmo país que Lakeside.”

Ao que Wednesday responde, em tom de crítica:

“― Não fica. São Francisco não fica no mesmo país que Lakeside, do mesmo jeito que New Orleans não fica no mesmo país que Nova York, ou que Miami não fica no mesmo país que Minneapolis.”

É realmente verdade que tais lugares sejam totalmente diferentes e ainda assim façam parte, geograficamente falando, do mesmo país. Porém, se pararmos para uma análise mais profunda, em países grandes como os Estados Unidos e também o Brasil, a diferença é realmente tão gritante entre uma cidade e outra, e não apenas entre os estados, que tais lugares não parecem fazer parte do mesmo país, como podemos notar no filme “Central do Brasil”.

Obs.: Existe uma cidade nos Estados Unidos realmente chamada Lakeside, no Texas. Porém, como avisa o autor antes de a história começar… ele tomou liberdades quanto à geografia dos Estados Unidos e… “apenas os deuses são reais”. =P Fora isso, “por acaso”, Neil Gaiman mora perto de Minneapolis 🙂

Neil critica, inclusive, o fato de as pessoas se interessarem por “mandigas”, “simpatias”, “rituais de prosperidade”, e coisas do gênero sem se importarem em saber a que deuses deveriam reverenciar, apenas se interessando pelo lado “prático” de tais coisas… e realmente podemos notar o quanto até mesmo as pessoas que se dizem católicas servem-se dessas mesmas “simpatias” e desses mesmos “rituais” que eram, antigamente, dedicados a deuses que eles mesmos consideram pagãos. É, de certa forma, uma morte não na religião em sim, mas na história da Humanidade, que vai se perdendo com o passar do tempo, assim como muito do que poderíamos saber sobre os Druidas foi se perdendo com o tempo, tanto porque eles usavam a oralidade e não a escrita, como porque os cristãos modificaram suas histórias para a si servirem, o que torna a história da Humanidade praticamente fictícia em diversos pontos cruciais… e o que tende a piorar com o tempo, como mostra Neil em Deuses Americanos.

“A Viúva aprendeu tudo que Mama ensinou a ela. Mas não tinha interesse verdadeiro pelos deuses. Não mesmo. Seu interesse estava na prática. Ela ficou deliciada ao descobrir o que fazer para segurar um homem… Mergulhe um sapo vivo no mel e depois o coloque em um formigueiro. (…)”

Curiosidade: Quando Shadow sonha com o Pássaro-Trovão e uma montanha de ossos é uma referência  a “Um sonho de mil gatos” de Sandman, em que a gatinha fala de um sonho em que ela está andando em uma montanha de ossos e tem um pássaro voando com a mesma descrição do livro Deuses Americanos.

Não tinha como não citar o discurso da Sam aqui… mesmo sendo um dos mais citados em toda a internet e em muitas das resenhas sobre esse livro, é indispensável! Então, abrupta, mas belamente, escolhi encerrar essa resenha com ele, com as palavras de Neil Gaiman em si, pois elas falam muito mais do que as minhas aqui tentaram chegar perto de exprimir a beleza, a crueza, a tristeza e o encanto de “Deuses Americanos”:

“Posso acreditar em coisas que são verdade e posso acreditar em coisas que não são verdade. E posso acreditar em coisas que ninguém sabe se são verdade ou não. Posso acreditar no Papai Noel, no coelhinho da Páscoa, na Marilyn Monroe, nos Beatles, no Elvis e no Mister Ed. Ouça bem… Eu acredito que as pessoas evoluem, que o saber é infinito, que o mundo é comandado por cartéis secretos de banqueiros e que é visitado por alienígenas regularmente ― uns legais, que se parecem com lêmures enrugados, e uns maldosos, que mutilam gado e querem nossa água e nossas mulheres. Acredito que o futuro é um saco e que é demais, e acredito que um dia a Mulher Búfalo Branco vai ficar preta e chutar o traseiro de todo mundo. Também acho que todos homens não passam de meninos crescidos com profundos problemas de comunicação e que o declínio da qualidade do sexo nos Estados Unidos coincide com o declínio dos cinemas drive-in de um Estado ao outro. Acredito que todos os políticos são canalhas sem princípios, mas ainda assim melhores do que as outras alternativas. Acho que a Califórnia vai afundar no mar quando o grande terremoto vier, ao mesmo tempo em que a Flórida vai se dissolver em loucura, em jacarés, em lixo tóxico. Acredito que sabonetes antibactericidas estão destruindo nossa resistência à sujeira e às doenças, de modo que algum dia todos seremos dizimados por uma gripe comum, como aconteceu com os marcianos em Guerra dos Mundos. Acredito que os melhores poetas do século passado foram Edith Sitwell e Don Marquis, que o jade é esperma de dragão seco, e que há milhares de anos em uma vida passada eu era uma xamã siberiana de um braço só. Acho que o destino da humanidade está escrito nas estrelas, que o gosto dos doces era mesmo melhor quando eu era criança, que aerodinamicamente é impossível pra uma abelha grande voar, que a luz é uma onda e uma partícula, que tem um gato em uma caixa em algum lugar que está vivo e que está morto ao mesmo tempo (apesar de que, se não abrirem a caixa algum dia e alimentarem o bicho, ele no fim vai ficar só morto de dois jeitos), e que existem estrelas no universo bilhões de anos mais velhas do que o próprio universo. Acredito em um deus pessoal que cuida de mim e se preocupa comigo e que supervisiona tudo que eu faço, em uma deusa impessoal que botou o universo em movimento e saiu fora pra ficar com as amigas dela e nem sabe que estou viva. Eu acredito em um universo vazio e sem deus, um universo com caos causal, um passado tumultuado e pura sorte cega. Acredito que qualquer pessoa que diz que o sexo é supervalorizado nunca fez direito, que qualquer um que diz saber o que está acontecendo pode mentir a respeito de coisas pequenas. Acredito na honestidade absoluta e em mentiras sociais sensatas. Acredito no direito das mulheres à escolha, no direito dos bebês de viver, que, ao mesmo tempo em que toda vida humana é sagrada, não tem nada de errado com a pena de morte se for possível confiar no sistema legal sem restrições, e que ninguém, a não ser um imbecil, confiaria no sistema legal. Acredito que a vida é um jogo, uma piada cruel e que a vida é o que acontece quando se está vivo e o melhor é relaxar e aproveitar.”

Resenha: Ana Death Duarte
Edição de imagens: Alonso Lizzard

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Editora Conrad

21 comentários em “Resenha do livro: Deuses Americanos

  1. Olha, concordo em todos os sentidos contigo. estou lendo este livro no momento e o deixo para aqueles momentos antes do sono chegar, deitado na cama e rodeado pela escuridão. Lí bastante dele durante uma viagem por Minas Gerais e ví que é um ótimo companheiro nestes momentos também. Ea densidade do livro não permite mesmo que se avance rápido por ele, mesmo sendo a leitura por demais gostosa. Enfim, já dissestes muito sobre o livro e só me resta elogiar bastante a resenha.

    PArabéns!

    • icultgen disse:

      Ler esse livro em uma viagem parece mais emocionante, justamente por esse clima do livro. Adorei o comentário 🙂 Thanks

      • Mas por conta da resenha, vou segurar para não ler “Coisas Frágeis”. Vou deixá-los na estante aqui bem guardados até acabar de ler o “Deuses” e fiquei pensando sim em quem é o Deus esquecido. E um Sonho de Mil Gatos é minha história favorita do Sandman

  2. Supernovo disse:

    Clássico moderno, sem dúvidas. Neil Gaiman é um dos melhores, um dos meus favoritos também. Uma das coisas que eu gosto nele, além dos bons livros, é essa coisa de colocar uma pitada bem humorada no texto, mesmo se for um livro sério e triste. Não é um toque pra nos fazer rir, mas uma espécie de lembrete de que a vida pode ser vista com outros olhos. Enfim, não sei explicar muito bem, hahaha.

    Ótima review, parabéns! 🙂

  3. chacel disse:

    Esse livro é simplesmente avassalador.
    Desde que saiu a versão pocket em inglês eu comprei e já li 7 vezes. Parece que a cada leitura descubro algo novo na história, nos personagens, etc….

    Provavelmente estarei lendo esse livro por muitos anos….

    Resenha impecável.

  4. iwishiwasinwonderland disse:

    Eu li “parcialmente” a resenha, porque pulei todas as citações do livro. O negócio do Gaiman, para mim, é ler e ir descobrindo a forma como ele desenvolve a história, ir absorvendo as citações e vendo como ele brinca com as palavras como se elas fossem, sei lá, animais selvagens que só conseguem ser domesticados por ele.
    Ok, devaneio, mas Deuses americanos está na minha lista e a resenha – pelo menos as partes que eu li e que não eram citações – só me deu MAIS VONTADE de ler!
    Como lidar?
    E filhos de anansi é uma história lindinha demais, com um final perfeito ♥

  5. Vou chover no molhado e elogiar a resenha também. Parabéns Ana.

    Esse livro é um dos meus “daqueles”, sabe? De cabeceira, como dizem, apesar de não ter costume de ler antes de dormir. rs* (prefiro escrever!)

    Tenho a primeira edição, conservadíssima, que achei num sebo. É uma preciosidade literária e uma grande inspiração pra mim, já que também adoro escrever sobre mitologias e lendas (por exemplo: http://www.recantodasletras.com.br/contos/1966811)

    Lembro de uma dúvida recorrente na época: QUEM é o Deus do esquecimento, aquele que entra no carro junto com Shadow, Apleseed, etc?

    Tem um site muito bom sobre o livro, bastante antigo também, que eu costumava acessar: http://frowl.org/gods/gods.html

  6. Claudia disse:

    Oi!

    Ah esse livro sobre a Mitologia Nórdica muito me interessa, comprei um sobre o assunto, mas não gostei dele.

    O Neil é o cara né, gostei muito do enredo e da reflexão sobre as pessoas. Adorei a foto verde do raio.

    Bah só pela resenha eu já acho que com certeza devo ler mais sobre os deuses antes do livro.

  7. Eu.Preciso.Ler.Esse.Livro.Urgente!!!
    Quando a Ana me contou desse livro, fiquei louco, porque ela sabe que o meu ponto fraco são as mitologias *–* Preciso compra-lo logo. Adorei a resenha, e a foto do Anubis de cílios XD Depois dessa resenha me empolgou mais a ler (mentira já estava empolgado faz um tempão.
    Tio Gaiman sempre trazendo histórias maravilhosas.

    Bjs

  8. Jacques disse:

    Parabéns pela ótima resenha.
    Do livros de Gaiman eu já li Coraline, Belas Maldições, Lugar Nenhum e Os Filhos de Anansi (que sim, é uma história alegre).
    Acho que o ponto forte dele ´a narrativa coesa e a indefinição de local, que faz com que qualquer pessoa se identifique com suas histórias.
    Valeu.

  9. Regina disse:

    Um livro fascinante, mesmo que eu não conheça todos os deuses e referências que estavam ali. Uma das melhores leituras do ano, mas altamente perturbador. Entrei no sonho de Shadow na montanha de ossos e realmente me entristeci com o final da Laura. O livro me causou pesadelos, sobrecarregou completamente meu cérebro e me encantou mesmo assim. Gaiman ainda não me decepcionou nenhuma vez.
    Se Anansi Boys realmente é mais feliz, lerei.

    Ótima resenha!

  10. […] do clássico moderno Deuses Americanos, do Neil Gaiman, já está no ar!!! XD Leiam a resenha dele aqui […]

  11. Fábio Faller disse:

    Ótima resenha, esse livro é sensacional, vale muito a pena ler.
    Abs.
    Fábio
    http://www.turmadocafe.com

  12. Primeiro quero parabenizar o Alonso pelo novo layout… ficou muito lindo… clean… ADOREI!!!!

    E sobre a resenha… só digo uma coisa… tenho que ler algo de Neil Gaiman… com certeza! Adorei²!

  13. Primeiro: Amei o novo layout, tá muito lindo! 🙂
    Segundo: A resenha ficou demais, amei! Esse livro deu muita vontade de ler… Coraline e Sandman tinha ficado com vontade, mas mais pra conhecer esse autor que é tão comentado. Mas Deuses Americanos parece que me chamou mais a atenção ainda.
    Esse discurso do final da resenha então só complementou a vontade! 🙂
    Parabéns Ana!

  14. Todos que conheço e tiveram o prazer de ler esse livro são só elogios. Espero muito em breve conseguir ler, assim com os demais do Gaiman. Ótima resenha,

  15. Deuses Americanos foi o primeiro livro do Gaiman que li. Já entrei de sola no trabalho do cara e virei fã. Algo que não acontece com todo mundo, já que ele desperta sensações do tipo “ame-o ou deixe-o”. Este livro é muito complexo e carregado de informações e referências. Merece ser lido, não uma, mas, pelo menos, umas duas vezes para o leitor pegar bem o jeito da história. E concordo, o negócio é denso. Bem denso. Parabéns pela resenha.

  16. Oi, Ana!
    Ainda não li nenhum livro do Neil Gaiman, mas já tenho Coisas Frágeis 1 e 2 me esperando.
    Eu adoro citações!!! Quando vejo alguma resenha que diz que o livro tem citações no início de seus capítulos fico toda feliz!!! E também adoro mitologia, apesar de não ser uma especialista. rsrs
    O livro parece ser ótimo, como você sempre consegue fazer com suas resenhas, fiquei muito curiosa pra ler!!

    ^^

  17. Thiago Ururahy disse:

    Complexo e, principalmente, seguindo uma estrutura pouco usual. É aquele tipo de livro que só alguém com “bala na agulha” como o mestre Gaiman tem condições de escrever e publicar sem grandes questionamentos quanto à forma.

    Genial do início ao fim.

  18. Patricia Lima disse:

    Acabei de ler ontem! Não é a melhor literatura do mundo mas prendeu minha atenção.
    Os andaimes literários estavam visíveis.
    Mas ler Neil Gaiman é a mesma coisa que ler uma Graphic Novel!

  19. icultgen disse:

    Oi pessoal, passando aqui para avisar para o pessoal que o nosso novo site já está no ar. Novos artigos serão postados lá e não mais aqui.

    Endereço novo:
    http://www.icultgen.com.br
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